Além de desencadear novos casos de diabetes, o vírus Sars-CoV-2 pode prejudicar o pâncreas diretamente, causando inflamação crônica e até câncer.
Quase que diariamente, o microbiologista Peter Jackson recebe e-mails de pessoas que se recuperaram da covid-19 apenas para descobrir que desenvolveram novos problemas de saúde.
Recentemente, uma mulher na casa dos 30 anos e mãe de dois filhos escreveu ao professor da Universidade de Stanford contando que passou a tomar diversos medicamentos para diabetes todos os dias — embora ela não corresse o risco de desenvolver a doença antes da infecção pelo novo coronavírus.
Os especialistas sabem, desde o início da pandemia, que ter diabetes é um fator de risco para infecções mais graves por covid-19. Diabetes é uma condição caracterizada pela produção insuficiente de insulina ou sua utilização ineficiente para neutralizar o aumento do açúcar no sangue. Contudo, também suspeitam que o contrário também possa ocorrer. Em maio, Jackson publicou um estudo na revista científica Cell Metabolism demonstrando que o Sars-CoV-2 infecta as células do pâncreas que produzem insulina, podendo até mesmo atingi-las e destruí-las — sugerindo que o vírus também pode causar diabetes.
“Isso é real”, afirma Jackson sobre as reclamações de recém-diagnosticados com diabetes que lotam a caixa de entrada de seu e-mail. Embora alguns especialistas argumentem que a condição é rara, Jackson reitera que os dados sugerem que, em 2020, até 100 mil pessoas foram diagnosticadas com diabetes de maneira inesperada.
Ele é um dos muitos cientistas que temem uma nova onda de pacientes diabéticos que terão que monitorar a glicemia pelo resto das vidas. Mas Jackson e seus colegas também se preocupam com o fato de que o vírus possa afetar o pâncreas de maneiras que, até o momento, podem não ser evidentes, mas que um dia podem ter implicações preocupantes para o órgão em si e para o todo o sistema digestivo.
“Isso pode se tornar uma pandemia decorrente de uma pandemia”, diz Paolo Fiorina, professor de endocrinologia da Universidade de Milão e conferencista da Faculdade de Medicina de Harvard, que também liderou investigações sobre a relação entre covid-19 e diabetes.
Os cientistas ainda estão discutindo a gravidade da ameaça que a covid-19 representa para o pâncreas em longo prazo — e se aqueles que desenvolvem diabetes terão que conviver com a condição para sempre. Embora sejam necessários grandes estudos e possivelmente muitos anos para responder a essas perguntas, os pesquisadores já estão trabalhando no caso.
Como a covid-19 prejudica o pâncreas
O pâncreas é um órgão que desempenha um papel fundamental no sistema digestivo. Localizado atrás do estômago, a parte mais larga do pâncreas se conecta ao intestino delgado, perto do local onde o estômago libera os alimentos parcialmente digeridos. Nessa região, o pâncreas secreta uma variedade de sucos pancreáticos para continuar a digestão dos alimentos.
A maior parte dos alimentos é decomposta em açúcar, que é liberado na corrente sanguínea. O pâncreas é responsável por regular os níveis de açúcar no sangue com a produção de hormônios: insulina, que reduz, e glucagon, que aumenta os níveis de glicose. Mas se esse equilíbrio não for cuidadosamente mantido, a glicemia elevada por muito tempo pode causar mau funcionamento de órgãos e danos permanentes à retina, aos rins, aos nervos, ao coração e aos vasos sanguíneos.
Na Itália, epicentro da covid-19 no início da pandemia, ficou evidente que os níveis de glicose das pessoas que foram internadas com covid-19 estavam descontrolados. Fiorina se interessou em investigar esses efeitos em abril de 2020. Na época, ele era chefe de endocrinologia em um hospital em Milão, que atendia mais de 20 mil novos casos de covid-19 diariamente e registrava uma morte a cada hora.
Certo dia, um patologista comentou com Fiorina como era estranho o fato de muitos pacientes que sucumbiam à doença serem hiperglicêmicos, o que significa que a glicemia estava muito elevada — sinal de que o pâncreas não estava desempenhando sua função. “Sei que as pessoas com diabetes têm mais probabilidade de morrer”, Fiorina recorda ter dito ao patologista na época. “Mas pode haver algo mais.”
Fiorina decidiu investigar. Em maio de 2021, ele publicou um estudo com 551 pacientes sem histórico anterior de diabetes, mostrando que 46% haviam se tornado hiperglicêmicos recentemente. A covid-19 havia afetado completamente o perfil hormonal desses pacientes — após a infecção, apresentaram glicose perigosamente alta, pois o uso de insulina pelo organismo havia se tornado menos eficiente, embora os níveis estivessem normais antes da infecção.
Na mesma época, autópsias de pessoas que morreram de covid-19 também revelaram que o vírus havia infectado o pâncreas — o que os pesquisadores confirmaram em um conjunto de estudos publicados na revista científica Cell Metabolism. Jackson, que estava entre esses pesquisadores, descobriu que o Sars-CoV-2 infecta e mata as células beta que produzem insulina. Acredita-se que essas células não sejam facilmente repostas — e perdê-las torna o indivíduo mais suscetível à diabetes.
Algo que ainda não estava evidente nessa questão, porém, é como o vírus chega ao pâncreas para matar as células. Fiorina afirma que sua última pesquisa, ainda não publicada, tenta responder a essa pergunta. Seus dados mostram que o Sars-CoV-2 pode ser detectado no linfonodo pancreático, sugerindo que o vírus poderia chegar a esse local se deslocando diretamente pelo sistema linfático ou pela corrente sanguínea.
Se confirmadas, Fiorina afirma que tais descobertas indicariam que o vírus infecta o pâncreas diretamente. Entretanto, ele acrescenta que o Sars-CoV-2 também prejudica o pâncreas de forma indireta.
Quando o sistema imunológico atua para se defender contra a covid-19, às vezes pode reagir de maneira exagerada e atacar indiscriminadamente, causando inflamação em todo o corpo. Isso pode sobrecarregar o pâncreas e elevar os níveis de glicose. Além disso, os esteroides utilizados nos hospitais para tratar essa resposta inflamatória também podem agravar a situação. Kathleen Wyne, endocrinologista do Centro Médico Wexner da Universidade Estadual de Ohio, explica que pessoas com perfis hormonais normais e sem fatores de risco para diabetes não apresentam problemas ao receber esses esteroides. Mas, para aqueles que já são suscetíveis à diabetes, os esteroides podem desencadear uma produção excessiva de insulina, fazendo com que as células parem de responder ao hormônio — o que também aumenta os níveis de glicose no sangue.
Implicações para a saúde em longo prazo
Os cientistas ainda não tinham conseguido compreender os danos ao pâncreas nos meses seguintes à recuperação de pacientes com covid-19. Mas, em maio, o estudo de Fiorina revelou que um terço das pessoas que se tornaram hiperglicêmicas recentemente permaneceram com o quadro por pelo menos seis meses após a recuperação.
Jackson aponta que isso representa muito mais diagnósticos de diabetes do que seria esperado em um ano — e “é apenas a ponta do iceberg”.
“Não quero ser alarmista, mas poderemos ver mais efeitos em longo prazo no pâncreas do que imaginamos”, observa Jackson. “As pessoas não sabem qual é o estado do pâncreas até que tenham problemas reais.” Ele acrescenta que, mesmo aqueles que não desenvolveram diabetes nos meses seguintes à infecção por covid-19, ainda podem desenvolvê-la no futuro.
Já é ruim o suficiente desenvolver uma doença crônica como a diabetes, que requer monitoramento da glicemia e injeções regulares de insulina. Mas a covid-19 também pode prejudicar o pâncreas silenciosamente, com diferentes repercussões na saúde.
Jackson compara isso a uma casa pegando fogo, ocasião em que pensamos apenas nas chamas que consomem os móveis, sem notar todos os danos que a fumaça causa à estrutura da casa. Jackson ressalta que o vírus pode produzir cicatrizes nos tecidos do pâncreas, tornando-o mais suscetível a complicações como pancreatite — inflamação crônica do pâncreas — ou até câncer de pâncreas.
“Não é como uma parede resistente na qual se pode colocar gesso novo”, compara ele. “Existem problemas inerentes à arquitetura do órgão quando ele sofre danos. Reparar os danos é mais difícil porque a estrutura está prejudicada.”
Jackson explica que danos ao pâncreas também podem prejudicar estruturas adjacentes, como o ducto biliar ou os rins — que são alvos típicos das complicações da diabetes em longo prazo. De acordo com a Clínica Mayo, cerca de um quarto das pessoas com diabetes acaba desenvolvendo doença renal devido a danos nos vasos sanguíneos que filtram os resíduos do sangue.
Ainda está em debate o quanto essas complicações são preocupantes para a população em geral.
Qual a população em risco?
Os cientistas estão divididos sobre a relação entre o pâncreas e a covid-19 — e Wyne não acredita que a doença realmente cause diabetes.
Isso porque muitas pessoas realmente se recuperam após a fase aguda da infecção. Muitos de seus pacientes no Centro Médico Wexner da Universidade Estadual de Ohio conseguiram interromper o uso de insulina logo após terem alta. Wyne também reitera que não houve aumento de novos diagnósticos de diabetes tipo 1 em sua clínica durante a pandemia, e ela também não observou nenhuma evidência de morte expressiva de células beta.
“Acredito que a verdadeira questão seja: o que acontece quando a resposta inflamatória diminui e o uso de esteroides é interrompido?”, questiona Wyne. “Se o quadro de diabetes permanecer, será que a pessoa estava prestes a desenvolver diabetes de qualquer maneira?”
Ela explica que pessoas que desenvolvem diabetes após uma infecção poderiam estar em risco de desenvolver a doença de qualquer maneira e que o estresse provocado pela covid-19 no organismo apenas acelerou o processo. Alguns indivíduos podem desenvolver diabetes crônica ou apenas temporária, assim como algumas pessoas desenvolvem diabetes gestacional durante a gravidez e os níveis de glicose no sangue voltam ao normal depois.
“Essa tem sido minha abordagem com pacientes com covid-19”, conta ela. “Se eles não tomam remédios para diabetes ou tomam em baixas doses, digo a eles que é um sinal de alerta de que poderão desenvolver diabetes — só não sei quando.”
Wyne aponta que levará décadas até que os cientistas consigam analisar os dados populacionais para determinar se a pandemia teve algum efeito na taxa de diagnósticos de diabetes.
Enquanto isso, os pesquisadores do outro lado admitem que é possível que alguns dos novos casos de diabetes incluam pessoas que já eram predispostas à doença — e também esperam que o quadro de hiperglicemia se resolva em algumas pessoas com o tempo. Mas apontam que não há dados que sugiram o contrário. Para eles, a pandemia representa uma oportunidade de responder a uma pergunta que atormenta os pesquisadores há anos: um vírus pode desencadear diabetes?
Solucionando um mistério de longa data
Há muito tempo, os cientistas consideram a possibilidade de a diabetes tipo 1 ser causada por uma infecção assim como suspeitam que outras doenças autoimunes (como a doença de Hashimoto, na qual o sistema imunológico ataca a tireoide, e o lúpus, uma condição em que o sistema imune ataca tecidos saudáveis em todo o corpo) sejam desencadeadas por vírus.
Mas nunca houve evidências suficientes para comprovar essa hipótese. Embora algumas pessoas tenham sido diagnosticadas com diabetes após surtos anteriores de Sars e Mers, foram ocorrências muito raras para se tirar qualquer conclusão. Ao infectar um número muito maior de pessoas, a covid-19 tornou a coleta desses dados possível, comenta Francesco Rubino, chefe de cirurgia metabólica e bariátrica do King’s College de Londres.
Em agosto passado, ele e outros pesquisadores em diabetes lançaram um registro global de pacientes com diabetes relacionada à covid-19 para finalmente coletar essas informações. Ele comenta que não só terá implicações clínicas para a compreensão da relação entre o Sars-CoV-2 e o pâncreas, como também espera que tenha ramificações mais amplas.
“Se for comprovado com algum grau de confiança que a covid-19 pode realmente causar diabetes, então haverá uma prova de conceito para um mecanismo viral por trás da diabetes”, explica Rubino.
Rubino comenta que o registro finalmente conta com mais de 620 casos, número definido por sua equipe de pesquisadores como um tamanho de amostra grande o suficiente para iniciar uma análise dos dados. Ele espera que, para alguns pacientes no registro global, a hiperglicemia seja resolvida com o tempo. Mas entre pacientes que realmente possuem diabetes, os pesquisados buscarão por padrões que, segundo Rubino, podem até mesmo revelar uma nova forma de diabetes.
“Há muitos de nós investigando esses casos, pois eles podem fornecer informações não apenas sobre a covid-19, mas também sobre a diabetes de forma mais ampla”, salienta ele. “Talvez tenhamos de repensar o que sabemos sobre a diabetes se descobrirmos que esse vírus pode, sozinho, desencadear a doença do zero. Seria uma descoberta muito importante.”
Entretanto, seja qual for o mecanismo da diabetes pós-covid-19, Rubino alerta às pessoas que tiveram a infecção que é importante lembrar de que a diabetes geralmente ataca silenciosamente e pode ter complicações graves. Ele recomenda que qualquer pessoa que tenha se recuperado de uma infecção pelo novo coronavírus saiba reconhecer os primeiros sinais de alerta, como fadiga, micção frequente e sede inexplicável, e procure tratamento imediatamente.
“Acredito que não se torne um problema para a grande maioria das pessoas que contraíram covid-19”, opina ele. “Mas é melhor saber o diagnóstico precocemente.”
Fonte: National Geographic
Disponível em:
https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2021/10/covid-19-ligada-a-novos-casos-de-diabetes-riscos-podem-se-agravar-no-longo-prazo
Acesso em: 09 de novembro de 2021